A MARVEL NÃO TEM CLÁSSICOS – A QUEDA DE MURDOCK
O ano era 1987. Eu tinha 12 anos. Naqueles tempos mais inocentes, a melhor coisa do mundo era chegar da escola, almoçar, fazer a lição de casa e poder dedicar o resto da tarde a leitura dos quadrinhos.
Ler quadrinhos era um hábito. Eu já era velho conhecido do vendedor da banca, ele separava os títulos no dia que chegavam e eu passava para pegar os “pacotinhos” semanalmente. Ler gibi fazia parte da minha vida da mesma forma que assistir sessão da tarde ou brincar na rua de polícia e ladrão.
Era uma atividade absolutamente rotineira, que não tinha nada de fora do comum.
Isso mudou um dia.
O gibi era Superaventuras Marvel Nº 62. Tinha uma estória dos X-men, uma do Shang Chi e uma do Demolidor. Claro, eu lia com absoluta vontade os mutantes, mas não ligava muito para o herói vestido de vermelho, menos ainda para a xerox do Bruce Lee.
Comecei a ler a aventura do Demolidor de forma totalmente descompromissada, sem a mínima noção do que me esperava.
E levei um soco no estômago.
Uma ex-namorada do herói, agora viciada em heroína, troca a identidade secreta dele por uma dose. A informação chega às mãos do Rei do Crime, seu maior inimigo. E o que o Rei decide fazer com a informação foi, para mim, algo BEM diferente do que eu estava acostumado até então.
Começava ali a saga BORN AGAIN, aqui melhor traduzida para A QUEDA DE MURDOCK. Uma estória que mudaria não só a vida do Demolidor, mas talvez até a forma de se fazer quadrinhos a partir dali, criando o que é até hoje a melhor saga já contada sobre o guardião de Hell´s Kitchen.
Hoje dizer que Frank Miller é um gênio é chover no molhado, mas naquele ano, ele simplesmente soltou A Queda de Murdock no meio de um gibi mensal, sem preparação nenhuma, como se fosse a coisa mais normal do mundo. E o mais surpreendente é que, para fazer isso, ele não contou uma estória do Demolidor.
Ele contou uma estória de Matt Murdock.
Ao descobrir a “identidade secreta” do herói, o Rei do Crime começa lentamente a destruir a vida dele. Seja cancelando o cartão de crédito, seja manipulando situações para que a namorada dele se afeiçoasse ao seu melhor amigo, Foggy Nelson, ou fazendo com que ele perdesse sua licença para advogar… culminando com a completa destruição de seu apartamento… O Reio vai tirar, peça por peça, tudo aquilo que significa algo para Murdock.
Ele é destruído. E se levanta. E mostra porque ele é merecedor da alcunha de “Homem sem Medo”.
Hoje em dia os quadrinhos mudaram. A forma de se fazer quadrinhos mudou. Os autores se tornaram celebridades, muito mais importante do que os desenhistas, que muitas vezes não são nem sequer lembrados, como se fossem uma parte menos importante da estória. O que temos são escritores que querem criar novos clássicos a cada edição que escrevem, cheios de pretensão, achando que é só dividir a página em nove quadros para criar uma nova obra prima, duvidando da inteligência de seus leitores.
Mas naquela época, os escritores só queriam contar boas estórias. Tinham uma ideia e queriam divida-la com o mundo.
E ao fazer isso, criavam a verdadeira definição da palavra “clássico”.
A Queda de Murdock consegue não só apresentar a melhor estória já feita para o Demolidor, mas também consolidar aquele que viria se tornar o meu personagem preferido de todos os tempos.
“Um SOLDADO cuja voz poderia comandar um Deus… e COMANDA.”
Hoje em dia o jovem nerd pode se vangloriar de ter a estante cheia de encadernados de capa dura com as lombadas padronizadas, e com a internet ele já nasce sabendo quem é o escritor, ignora o artista e deixa que youtubers e críticos definam o que é um clássico ou não.
Mas ele nunca vai saber o que é chegar da escola, pegar um formatinho e descobrir do que o Rei do Crime é capaz.