Coringa (2019) – o Triunfo da Loucura
Houve bastante controvérsia em torno de Coringa (Todd Phillips, 2019). Primeiro, porque no ano em que Batman completa 80 anos, o melhor que a DC/Warner pareceu capaz de fazer foi um filme de vilão. Depois de toda a lambança com o universo compartilhado idealizado por Zack Snyder, anunciaram um filme à parte da cronologia – tanto da estabelecida pela trilogia “Homem de Aço” / “Batman v Superman” / “Liga da Justiça”, quanto dos vindouros filmes dirigidos por Matt Reeves.
Segundo, pela série de questionamentos que a violência presente no filme levantou. Um debate importante, mas feito de maneira desconexa, antes mesmo da estreia do filme, sem uma preocupação real em entender o contexto em que ela acontece. A violência existe no mundo – no filme, ele é mostrada de maneira crua e imparcial, até. Afeta ricos, pobres, bons, maus, sábios e bobos. Indiscriminada, aleatória, suja e cruel.
As comparações com “Taxi Driver” (Martin Scorcese, 1976) são justas. O filme realmente nos transporta no tempo, até a ̶N̶o̶v̶a̶ ̶Y̶o̶r̶k̶ Gotham City dos anos 80. Sem ser didático, sem subestimar a inteligência do público, sem os estúpidos personagens de Christopher Nolan explicando o filme a cada meia hora, uma série de perguntas fica sem resposta, tudo muito subjetivo e intencionalmente deixado lá – como na vida, não temos todas as respostas.
A primeira pergunta é se faz sentido um filme do Coringa sem Batman. Vale lembrar que o Batman é, possivelmente, o personagem que mais vezes foi transportado para fora de seu habitat, com histórias mostrando “Batman na Inglaterra Vitoriana”, “Batman numa América totalitária”, “Batman vampiro”, “Batman no futuro distópico”. A maior obra do personagem, quiçá dos quadrinhos, o coloca anos à frente da cronologia, fechando sua saga e lhe dando seu próprio apocalipse. O Coringa, que já teve até uma tentativa de revista mensal própria nos anos 70, é um personagem imensamente popular, facilmente reconhecível e que permite uma liberdade de ambientação extraordinária. Basta lembrarmos que o Justiceiro, da Marvel, começou como um coadjuvante, um antagonista no gibi do Homem-Aranha – mas já teve três filmes para o cinema que sequer mencionam o Escalador de Paredes. Venom tem seguido pelo mesmo caminho, cada vez mais distante do personagem que o originou. Pegar o Coringa e jogá-lo num ambiente novo, “vamos tentar, vamos ver como ele funciona, se funciona” foi uma jogada brilhante. É o Coringa. Sua existência não depende de um Batman da maneira como nos acostumamos a ver, mas o roteiro foi genial em mostrar que os dois estão ligados. A referência a Ano Um foi muito bem colocada.
Como se não bastasse a história ser boa, temos Joaquin Phoenix inspiradíssimo, Robert DeNiro mais focado na atuação do que em simplesmente “pagar o aluguel”, diálogos maduros e uma boa dose da sujeira, do caos que estamos acostumados a pensar quando se fala em Gotham City antes do surgimento do Batman. O filme é como uma boa música do Van Halen: vai ficando cada vez mais rápida à medida que avança (só que, nesse caso, a música foi escrita por um Kurt Cobain com a arma apontada para a própria cabeça, enquanto Courtney Love gargalha, Axl Rose lhe desfere alguns socos e Dave Grohl lhe dá as costas para ser bem-sucedido sem neuras). O filme é impactante e, a bem da verdade, é extremamente previsível; só é curioso que ainda assim ele surpreenda, que mesmo entregando o que seria o mais óbvio (se tratando de um personagem muito conhecido), ele faça isso com muito talento.
Claro que a dinâmica entre diretor e astro ajudou. Phoenix consegue ter um olhar ameaçador, aterrorizante. Diferente de Jared Leto, nós realmente sentimos medo desse Coringa. Diferente de Heath Ledger, ele não exerce um fascínio que nos leva a admirá-lo. Diferente de Jack Nicholson, ele não se importa com absolutamente nada. E a risada.
Meus amigos.
A gente não quer estar perto quando ele está rindo.
A gente só quer que ele pare de rir.
Incomoda. Dá nos nervos. É perturbador, faz a gente virar o rosto.
Existe lá sua crítica social, mas ela também não é o que esperamos. O agente do caos de Ledger é substituído aqui por um mero gatilho, que detona uma revolução popular descerebrada contra “as elites”, para derrubar “os privilegiados” – mas são apenas arruaceiros, imbecis ou pessoas que falam em violência da boca pra fora. “Tem que matar tudo mesmo”, mas jamais seriam capazes de algo assim, não apoiariam algo assim. Ou só precisavam de um gatilho.
Há referências aos quadrinhos sim, muito bem posicionadas – além dos já citados Cavaleiro das Trevas e Ano Um, há momentos que nos remetem a Piada Mortal e Asilo Arkham, sem adaptar nenhuma delas especificamente. É aproveitar a riqueza da mitologia do personagem, é mostrar que, em boas mãos, o que define o Coringa não é o Batman. Esse clichê é virado de ponta-cabeça e, quando o filme termina, Gotham está de um jeito que vai definir o Homem-Morcego. Outro clichê destruído: a frase de que “basta um dia ruim para transformar o melhor dos homens em alguém como o Coringa”. Bom, aqui ele não tem um dia ruim. Tem uma vida inteira horrível, desgraçada, que piora assustadoramente rápido, de maneiras humanas e realistas. O pior de tudo? Até essa vida miserável é uma mentira.
Eu espero que não o integrem, nem como easter egg, a qualquer outro filme que venha por aí, que não façam uma continuação, que não mexam mais nessa pequena pérola de genialidade. Porque, como o próprio Batman diz na graphic novel de Grant Morrison, “eu tenho medo de que, quando eu entrar lá, seja como voltar para casa”. E aquele sorriso esteja me esperando.