Hannibal – A Série

Servidos?

Eu não sou muito de maratonar séries. Sou mais de assistir quando tenho vontade, no meu ritmo – e quando eu lembro. Não são poucas as séries que acabei largando no meio porque meu interesse foi diminuindo ou porque as esqueci por completo. Assistir vários episódios de uma vez só, então? Pode parar, a vida é muito curta pra isso.

A exceção foi Hannibal.

Eu sempre fui fascinado pela história do serial killer canibal criada por Thomas Harris. Como muita gente da minha geração, tudo começou quando assisti “O Silêncio dos Inocentes”, a versão cinematográfica do romance de mesmo nome e estrelada por Anthony Hopkins. De trás das grades da prisão, esse homem brilhante manipula a tudo e a todos, ajuda a capturar um serial killer tão ameaçador quanto ele e orquestra a fuga mais surpreendente da história do cinema. Daí em diante, foi correr atrás dos livros e dos filmes que foram saindo (além de “Manhunter”, com Brian Cox no papel de Lecter) e mergulhar na mente do vilão do cinema que alcançou a notoriedade de Darth Vader e do Coringa.

NHAM!

Em 2013, quando a NBC anunciou uma série baseada nos livros, desenvolvida por Bryan Fuller e estrelada pelo brilhante Mads Mikkelsen, confesso que não fiquei nem um pouco impressionado. Seria muito difícil uma produção de uma emissora de TV aberta conseguir surpreender, ou mesmo prender o público. Tudo que precisávamos saber sobre Lecter pareceu ter sido amarrado em “Hannibal Rising” (“A Origem do Mal”, no Brasil). Quando comecei a assistir, a primeira temporada já tinha acabado e os primeiros previews da segunda começavam a aparecer na internet.

Então ok, vamos lá, ver o primeiro episódio, se for ruim nem vejo o resto, etc. Eu faço isso com séries baseadas em gibis, não custava dar uma chance pro meu assassino favorito. E, realmente, os primeiros episódios são… mornos. No entanto, eu menosprezei a grande vantagem das séries sobre os filmes: o desenvolvimento dos personagens.

Um filme de duas, duas horas e meia, sempre vai ter limitações no roteiro enquanto tenta encontrar o equilíbrio entre efetivamente contar a história e mostrar o desenvolvimento de seus protagonistas. Hannibal tem 13 episódios de 40 minutos, tempo de sobra pra mostrar, com muito esmero, como a amizade entre Lecter e o investigador do FBI Will Graham surgiu e se desenvolveu, até que se tornassem inimigos e cúmplices.

“Eu quero te comer.” “Quê?”.

Tudo começa quando Will Graham (Hugh Dancy) é contatado por Jack Crawford (Laurence Fishburne), chefe do Departamento de Ciências Comportamentais do FBI, para ajudar a investigar um assassino serial. Mas Graham tem um “dom” (que está mais pra uma maldição): ele consegue visualizar a cena no momento do crime, se colocando no lugar do assassino enquanto ele comete seus crimes e mergulhando em sua psiquê, entendendo suas motivações. O abalo psicológico é muito forte, e Crawford decide deixar Graham sob a supervisão do psiquiatra forense Dr Hannibal Lecter – o qual, sabemos, é ele próprio um assassino serial canibal. Lecter passa a manipular o FBI através de Crawford e, principalmente, de Graham – mas cria uma espécie de vínculo com este. Lecter fica fascinado pelo talento de Graham de “entrar” nas mentes de assassinos, e passa a testar os limites de sua sanidade para transformá-lo também em um assassino.

Essa história, que seria imediatamente anterior à trama de “Dragão Vermelho”, já é suficientemente rica para garantir uma temporada até mais extensa. Condensada em 13 episódios, no entanto, temos uma trama mais enxuta e direta, sem encheção de linguiça e, ainda assim, muito bem estruturada. Mais importante – sempre surpreendente. Valendo-se de detalhes dos diversos livros e até dos filmes, ela nos deixa em dúvida para onde está caminhando. Logo percebemos que há muita liberdade criativa que pode nos levar em uma direção que não conversa, necessariamente, com o que foi mostrado em outras mídias. Percebe-se claramente que foi o trabalho passional de um fã. A série ainda conta com uma produção impecável, visualmente belíssima e com um desempenho de seu elenco que não deixa nada a dever às produções feitas para o cinema.

Pois quem poderia dizer que teríamos um Hannibal Lecter melhor que Anthony Hopkins? O olhar frio e apático de Mikkelsen, o distanciamento que ele impõe às pessoas a seu redor, sua fleuma e total desajuste com a sociedade, por incrível que pareça, contribuem para seu carisma. Ao invés de simplesmente entregar o “episódio da semana”, ele é soberbo em cada gesto, que parece calculado para que não haja o menor desperdício de energia, ou de sua atuação. O que é exatamente o que Lecter faria. Ele convence em cada frame, seja dizendo frases como “Matar deve fazer Deus se sentir bem” soarem como poesia, seja preparando um elaborado prato com partes humanas – um gesto que ele também faz parecer poesia. Do tipo bizarro e perturbador mas, ainda assim, poesia.

“O que eu falei foi lindo, mas foi só pra te comer.”

O restante do elenco brilha, mas eles parecem o tempo todo terem maçãs em suas bocas, apenas esperando a hora de serem degustados.

Graham, inclusive, é o “prato principal”. Lecter o saboreia aos poucos, entrando em sua mente como um parasita e deixando uma pequena infecção lá, uma mácula que se alastra e o destrói aos poucos. Melhor dizendo, o desconstrói – Lecter não o quer morto, mas sim refeito. Graham está sendo moldado como um assassino, à imagem e semelhança de seu mentor – um tema que é recorrente na série.

Hannibal pingou sangue por três temporadas, em todas com questionamentos sobre a natureza de Deus e dos assassinos, com uma iconografia construída cuidadosamente para que nos encantássemos com a obscenidade da morte e rejeitássemos a blasfêmia da vida – mas não uma vida qualquer, e sim uma vida que devesse ser tomada, com requintes muito particulares. Esticar as vísceras para que se tornassem cordas de violoncelo? Assar uma perna e a servir para seu dono não morrer de fome?

Você pode não gostar, mas isso foi elevado à categoria de arte.

Churrasco grego é arte, sim.

Aí veio meu grande problema com a série: eu não conseguia parar de assistir. Maratonava quatro, cinco episódios madrugada adentro, e não tinha um sono tranquilo. Era impossível. A vingança, a frieza com que os assassinatos eram cometidos, os diferentes troféus coletados pelos assassinos, a indiferença à condição mais elementar – estar vivo – me faziam dormir menos e pior. Mas eram poucos episódios, eu só precisava de três ou quatro madrugadas para encerrar uma temporada. Valia a pena.

A NBC anunciou o cancelamento, deixando milhões de fãs órfãos. Imediatamente começaram a pipocar pela internet petições para que Netflix ou Amazon assumissem a quarta temporada, o que não se concretizou até agora. Convenhamos, uma série que se despede da TV colocando um bebê humano vivo dentro de um porco precisa ser analisada com muito cuidado antes de ser renovada pra mais uma temporada.

Mas por mais que eu amasse os filmes, os livros e, principalmente, Hannibal Lecter, eu nunca fiquei tão obcecado por esse universo como durante a exibição da série. Uma série que eu sabia que me levaria a “Dragão Vermelho”, depois a “Silêncio dos Inocentes” e finalmente “Hannibal” – mas subverteu essa ordem, conseguiu apresentar algo novo e original apenas respeitando a fonte e dando à TV aquela que é, sem dúvida, a série mais bem produzida de todos os tempos.

E com o maior número de corpos.

Uma quarta temporada (confira aqui) parece ainda possível. Mikkelsen, agora trilhando prolífica carreira no cinema, já afirmou que só voltaria a fazer TV se fosse em Hannibal. Não resta dúvidas de que o sabor agridoce da série cativou os envolvidos na produção também. A única certeza é que, tanta espera, só pode significar um prato principal muito bem preparado.

E mais algumas noites mal-dormidas.

Ok, segunda-feira eu começo minha dieta.

Bon appetit.

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Raul Kuk o Mago Supremo

Raul Kuk - o Mago Supremo. Pai de uma Khaleesi, tutor de uma bruxa em corpo de gata.

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