Um Constantine que não está nos gibis
Sempre que uma adaptação de histórias em quadrinhos para o cinema é anunciada, os fãs ficam em polvorosa, tentando descobrir quais os atores envolvidos, como será o visual dos personagens e quais edições do gibi que conhecem tão bem serão transpostas para as telas. Quando chegou a vez de Constantine (Francis Lawrence, 2005), não foi diferente. O que tivemos, então, foi uma produção que certamente se encaixaria perfeitamente no universo cinematográfico de filmes da DC Comics (estabelecido apenas oito anos depois com “Homem de Aço”) – mas que não soube traduzir o espírito das HQs.
O ocultista de colarinho branco John Constantine foi criado pelo lendário roteirista Alan Moore em 1985 para o número 37 do gibi “The Saga of Swamp Thing”. Constantine deve seu surgimento aos artistas do gibi, Steve Bissette e John Totleben, fãs do The Police – eles insistiram em desenhar alguém que se parecesse com Sting. Moore o introduziu nas histórias do Monstro do Pântano como uma espécie de “conselheiro” para o protagonista, levando-o a conhecer os horrores da América em uma lendária road-trip. Ele ganhou sua própria revista, “Hellblazer”, em janeiro de 88, que circulou por 300 edições e se tornou o título mais bem-sucedido da linha Vertigo.
Era questão de tempo até chegar nos cinemas – a produtora Lauren Shuler Donner vinha tentando trazê-lo para as telas desde 1997. Atores como Nicolas Cage foram ligados ao projeto, mas somente em 2005 a produção saiu do papel. E a primeira polêmica foi justamente a escolha do protagonista.
Keanu Reeves é o tipo de ator limitado, mas que esbanja um carisma absurdo e passa muita credibilidade às produções que estrela. Mais do que isso – seu ar cabisbaixo e de que sabe mais do que realmente fala, caiu como uma luva no clima noir e sombrio do filme que, sob uma palheta de cores fria e desgastada, reflete a angústia de um homem próximo da morte – e terrivelmente ciente do fim que lhe aguarda.
A história é toda ambientada em Los Angeles, ao invés de Londres, e Reeves não pintou os cabelos, não fingiu sotaque britânico e nem mesmo usou o icônico sobretudo amarelo – testes de figurino revelaram que a cor não caía bem. Ele se veste de preto, de maneira discreta, com os cabelos desgrenhados e a barba ligeiramente malfeita. E essas são apenas as mudanças mais óbvias – mas com um material tão rico para adaptar, restava saber qual seria a linha narrativa escolhida.
Adaptando a saga “Hábitos Perigosos”, escrita por Garth Ennis nas edições de Hellblazer” #41 a #46, além de elementos da saga “Pecados Originais”, de Jamie Delano, houve uma preocupação grande em aproveitar a mitologia da melhor forma possível. Chas, Papa Meia-Noite, Gabriel e até mesmo a súcubo Ellie, interpretada por Michelle Monaghan mas que ficou de fora do corte final do filme, são posicionados ao longo da história para manter a busca de Constantine.
Suas motivações e personalidade, no entanto, se afastaram bastante do material original.
A história começa quando um funcionário de um grupo de arqueologia descobre, no México, a lendária Lança do Destino, que teria sido usada para matar Jesus e foi cobiçada pelo reich de Hitler por conta de seus poderes místicos. A trajetória da lança rumo aos Estados Unidos começa enquanto Constantine executa um exorcismo – usando espelhos, relíquias e, caso necessário, porrada. É quando somos apropriadamente apresentados ao protagonista – e seu fiel escudeiro, o taxista Chas. Descobrimos que Constantine é um homem condenado duas vezes: ele tem câncer de pulmão em estágio avançado. Pior ainda, desde criança ele fora capaz de ter vislumbres do mundo espiritual, por trás do véu dos cinco sentidos.
Com isso, ele cometeu suicídio e condenou sua alma ao inferno, mas foi trazido de volta pelos médicos e agora é apenas questão de tempo até que volte para lá. Ele tenta, inutilmente, escapar do fogo da danação enfrentando demônios, mas não é tão simples assim.
Constantine é egoísta e essa parece ser sua verdadeira ruína.
Tudo muda de figura quando uma mulher chamada Isabel Dodson comete suicídio em um hospital psiquiátrico. Sua irmã, Angela, é uma investigadora da polícia e não acredita que tenha sido suicídio – as irmãs tinham o mesmo “dom” de Constantine para enxergar o mundo espiritual. É quando ele começa a tentar entender por que a batalha entre o bem e o mal parece tão desequilibrada ultimamente.
Constantine revela para Angela que o mundo dos vivos é um grande tabuleiro de um jogo entre Deus e o Diabo. Tudo que eles querem é conseguir mais almas, mas sem influir diretamente – eles usam criaturas mestiças para isso, que Constantine combate sempre que saem da linha.
Quando o Arcanjo Gabriel se recusa a ajudar Constantine, ele recorre ao Papa Meia-Noite, um feiticeiro vodu, para tentar encontrar pistas que esclareçam o assassinato de Isabel.
Temos uma sucessão de rituais de magia como ela realmente é – firmemente ancorada no cotidiano do mundo real, que por força de hábito chamamos de “nosso”. Cada passo é uma ameaça, cada gesto pode abrir um portal para outros mundos e, com a intenção correta direcionada, tudo pode ser uma arma. A sequência de ação acaba por se revelar o momento mais fraco do filme, pois onde tudo era resolvido com ritualizações e elementos místicos, dá lugar a uma luta comum com armas “abençoadas”. É o ponto fora da curva da produção, que podia ter focado apenas no horror e no sobrenatural, sem a necessidade de tanta fisicalidade.
Temos momentos sensacionais de loucura e desespero, com insetos tentando matar pessoas ou o desespero para saciar uma sede que nunca acaba. Ainda que distante do material original, o filme consegue manter o clima de um mundo onde muitas coisas não podem ser facilmente explicada e magia não é ficar soltando raios por aí. O ponto alto do universo de magia da DC Comics é justamente trazer o sobrenatural para o cotidiano, para as ruas – Constantine não usa roupas espalhafatosas, não é um velho sábio. É apenas alguém que veio da classe operária, fez os amigos certos e conhece muita gente que lhe deve favores. A magia só é real se você acredita nela – caso contrário, você continua indo trabalhar todos os dias, alheio à guerra que se desenrola.
O filme acaba funcionando como uma produção de terror muito boa, mas falha como adaptação dos quadrinhos. De qualquer forma, é nítido que pequenas correções poderiam ajustar o desenvolvimento de filmes futuros, não só para aproximá-los dos quadrinhos como também para torná-lo parte do universo de filmes de super-heróis da DC.
O próprio Keanu Reeves já declarou diversas vezes que está aberto a uma continuação. O filme, que teve orçamento de 100 milhões de dólares, rendeu mais de 230 milhões ao redor do mundo. Não dá para negar que seria divertido ver Reeves hoje, quase quinze anos depois, interagindo com personagens que interagem com uma forma de magia mais banal e espalhafatosa, como Mulher Maravilha e Aquaman. Mas ao menos por enquanto, esse sonho fica distante e o filme, como o conhecemos, aguarda uma revisita.
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